Uma grande parte da arte de interpretação de passagens é mover-se das questões
específicas mencionadas no texto bíblico para o princípio geral que está
por trás desses elementos específicos.
Ao relatar uma história de família, Jack Kuhatschek, me fez lembrar de uma experiência parecida que
tivemos como família com nosso filho mais novo, Jonathan.
Jonathan ficou encantado quando finalmente estava com idade suficiente para
agradecer pela comida à mesa em nome de toda a família. Para a exasperação
de seus irmãos e irmã mais velhos, ele usou a oportunidade para falar de
praticamente tudo o que viu sobre a mesa. "Obrigado pelo sal e pela
pimenta. Obrigado, Senhor, por nossas colheres, garfos e facas. Obrigado pelo
leite, pela salada, pelo pão..." E assim ele continuou sua longa lista
enquanto a comida esfriava. Finalmente, e para a felicidade de seus irmãos já
irritados, Jonathan concluiu com o "Amém".
Ou
as instruções que havíamos dado a Jonathan sobre como orar agradecendo a
comida em geral não foram entendidas ou eram intencionalmente ignoradas. Porém,
passados alguns meses, um dia ele de repente nos surpreendeu ao dizer:
"Senhor, obrigado pela comida sobre nossa mesa. Em nome de Jesus, Amém"
Jonathan havia aprendido a generalizar.
A
legitimidade de tais práticas de generalização é repetidamente afirmada no
próprio texto bíblico. Deus não apenas resume toda a sua lei em dez
mandamentos (Êx 20.1-17; Dt 5.6-21), como também dá outros sete sumários
de leis. O Salmo 15 conserva a Lei de Deus em onze princípios; Isaías 33.15
a expõe em seis mandamentos; Miquéias 6.8 as resume em três ordens; Isaías
56.1 as reduz ainda mais a dois mandamentos; e Amós 5.4, Habacuque 2.4 e Levítico
19.2, colocam toda a lei em uma única declaração geral.
O
próprio Jesus deu continuidade a essa mesma tradição ao resumir a lei toda
em dois princípios: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração,
de toda a tua alma e de todo o teu entendimento... O segundo, semelhante a
este é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mt 22.37-40; Lc
10.26-28; Dt 6.5; Lv 19.2, 18).
A
fim de identificar princípios gerais no texto bíblico, há três perguntas
que os intérpretes devem fazer: O autor afirma o princípio de maneira explícita
na passagem em questão? Se não o faz, um contexto mais amplo revela esse
princípio geral? A situação específica do texto contém quaisquer razões,
explicações ou dicas que poderiam sugerir o que motivou o escritor a ser tão
concreto em vez de abstrato, ao mencionar as ilustrações específicas que
ele escolheu?
A
busca pelos princípios no texto bíblico normalmente não se encontra em
palavras ou frases isoladas e certamente não está em versículos editoriais
do texto. Em vez disso, tais princípios são mostrados pela tese que controla
parágrafos, capítulos, seções de um livro, e até mesmo livros inteiros da
Bíblia.
Há
inúmeros exemplos de um princípio específico declarado explicitamente
dentro de um bloco de ensinamentos. É o caso, por exemplo, da quinta visão
dentre as oito visões de Zacarias, em que ocorre a aparição enigmática de
um candelabro de ouro ladeado por duas oliveiras. Quando o profeta perguntou
"Que é isto?", recebeu como resposta — "Esta é a palavra do
Senhor a Zorobabel: Não por força, nem por poder, mas pelo meu Espírito,
diz o Senhor dos Exércitos" (Zc 4.6). Esse é princípio controlador
geral de toda a passagem: o que for conquistado não virá pelas mãos de líderes
políticos e religiosos; virá por meio do Espírito Santo.
Em
1 Coríntios 8 Paulo trata da questão de comprar comida que foi oferecida a
ídolos. No versículo 9 ele declara explicitamente o princípio relevante:
"Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha, de algum modo, a ser
tropeço para os fracos." Essa idéia vale para qualquer liberdade ou
restrição a ser exercida na compra de carne nos mercados que eram conhecidos
por sua ligação com o templo e seus rituais sacrificiais.
Mas,
e se o texto não fala diretamente qual é o princípio? Isso acontece com
freqüência no texto narrativo que tende a declarar as coisas indiretamente,
em lugar de colocá-las na forma de discurso direto, como acontece na prosa.
Nesses casos, podemos contar com o contexto geral para nos ajudar.
Gênesis
37-50 registra a história de José. Apenas uma ou duas vezes durante a longa
narrativa dessa história recebemos alguma indicação do que trata esse episódio
todo e por que Deus queria que ele fosse registrado em sua Palavra. Quando José
se revelou aos seus irmãos, ele concluiu: "Agora, pois, não vos
entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido
para aqui; porque, para a conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós...
Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão na terra e para
vos preservar a vida por um grande livramento" (Gn 45.5, 7). Mais tarde,
José repetiu esse tema aos seus irmãos ao dizer-lhes: "Vós, na
verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para
fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida" (Gn 50.20).
O princípio da providência prevalecente de Deus, portanto, é a chave para a
interpretação da narrativa sobre José. Somente o contexto a revela, mesmo
que cada episódio individual ou perícope dentro da história não mostre
esse princípio claramente como sua própria conclusão.
Em
outros casos, nem uma declaração direta do princípio e nem mesmo uma
declaração indireta dentro do contexto mais amplo aparece. O que fazer então?
Aqui, a busca pelo princípio geral deve ser feita com a minúcia de detetives
investigando a cena de um crime em busca da pistas.
Outros
recursos literários são acionados nesse ponto, tais como a cláusula de
motivo, que está freqüentemente ligada aos mandamentos bíblicos.
As cláusulas de motivo podem tomar pelo menos uma entre quatro formas (a cláusula
de motivo aparece em itálico):
1.
Explanatória — um
apelo ao bom senso do ouvinte. "Se um homem
amaldiçoar
a seu pai ou a sua mãe, será morto; amaldiçoou
a
seu pai ou sua mãe; o seu sangue cairá sobre ele" (Lv
20.9; ver
também
Dt 20.19; 20.5-8).
2.
Ética — um
apelo à consciência, à moral. "Quando edificares uma
casa
nova, far-lhe-ás, no terraço, um parapeito, para
que nela
não
ponhas culpa de sangue, se alguém de algum modo cair dela"
(Dt
22.8).
3.
Religiosa e teológica — um
apelo à natureza e vontade de Deus. "Não profanarão as coisas sagradas
que os filhos de Israel oferecem ao Senhor, pois
assim os fariam levar sobre si a culpa da iniqüidade, comendo as coisas
sagradas; porque eu sou o Senhor que os santifico" (Lv
22.15,16; Ver Dt 18.9-12).
4.
História da redenção — um
apelo à intervenção do Senhor na história de seu povo. "Quando
vindimares a tua vinha, não tornarás a rebuscá-la; para o estrangeiro, para
o órfão e para a viúva será o restante. Lembrar-te-ás
que foste escravo na terra do Egito; pelo que te ordeno que faças isso" (Dt
24.21,22).
Uma
vez que identificamos o princípio geral, devemos aplicar esse princípio à
nossa vida, seja à mesma situação
que o texto das Escrituras apresenta ou a uma situação semelhante
ou comparável.
O
livro de Tiago ilustra ambas as formas de aplicar um princípio básico. Esse
livro pode muito bem ser o resumo de uma série de sermões pregados por Tiago
e que têm como base uma parte da Lei da Santidade, nesse caso, em Levítico
19.12-18. Cada versículo dessa passagem, exceto pelo versículo 14, é citado
ou aludido no livro de Tiago.
Em Tiago 2.1, o autor repete uma parte da "lei real do amor" de Levítico
19.15 que diz: "Não farás injustiça no juízo" O princípio é
declarado claramente. Ele também é ilustrado em Tiago 2.2-7 quando se fala
como a igreja deve acomodar o homem rico usando anéis de ouro e roupas de
luxo e o pobre andrajoso. Se o homem pobre está sentado no chão e o homem
rico recebe um bom assento, não seria esse um importante tipo de discriminação
que ofende o princípio de não se mostrar parcialidade? Mas não é apenas
nesse contexto que a mesma política não-discriminatória poderia ser usada
com autoridade e precedência bíblica. Aliás, Tiago 2.9 repete o princípio
mais uma vez e mostra como ele se encaixa num princípio ainda maior:
"Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19.18b; Tg 2.8). O
princípio dessa passagem enquadra-se em qualquer situação que possa
prejudicar meu próximo (definido nas Escrituras como qualquer necessitado).
Assim, a aplicação pode envolver uma situação idêntica em que crentes negros ou os
de outras origens étnicas eram segregados a uma parte menos confortável da
igreja, a fim de dar preferência ao grupo racial dominante ou à classe que
"pagava as contas" daquela igreja. Ou ainda, a aplicação pode
estender-se além de uma situação igual ou idêntica para outras que sejam
semelhantes e e comparáveis desde que também estejam relacionadas ao princípio
geral em questão.